Consciente de todos os desafios, Sofia Marinho trocou a biologia pela gastronomia(foto: Gabriel Maciel/Divulgação) Sofia Marinho

Por que cozinhar ainda é visto como um trabalho masculino? Por que a maioria das mulheres preferem ser chefs dos seus próprios restaurantes? Questões que precisam ser discutidas se queremos uma gastronomia diversa e inclusiva.

Na semana do Dia Internacional da Mulher, vamos contar a história de duas jovens chefs de Belo Horizonte que conquistaram espaço no mercado com competência e determinação. Exemplos de que as mulheres são capazes de vencer os desafios e brilhar em uma cozinha profissional.
Desde o primeiro dia em que decidiu ser cozinheira, Sofia Marinho, que é formada em biologia, já sentiu a diferença por ser mulher. “Quando falei para o meu pai que ia fazer gastronomia, ele me perguntou: ‘Filha, você tem certeza? É um trabalho pesado’.” Mesmo consciente de todos os desafios, ela não se intimidou. Entrou no jogo para romper barreiras e mostrar que está tudo bem pedir ajuda para carregar uma panela pesada.
Mas isso não significa que foi fácil. Sofia conta que sempre precisou provar seu valor, que pode fazer o mesmo que um homem, ainda mais por ser jovem, feminina, delicada e com voz suave. Em um dos restaurantes onde trabalhou, ela chegou a ser ameaçada por um cozinheiro que não aceitava receber ordens de uma mulher. Como consultora, percebeu que conseguia cobrar um valor mais alto quando teve um sócio ao lado. Alguns clientes, inclusive, só se dirigiam a ele nas reuniões.
Costelinha glaceada
Costelinha glaceada com purê de avelã e vinagrete de uva (A Cozinha de Sofia)(foto: Sofia Marinho/Divulgação)
“Nós, mulheres, enfrentamos mais dificuldades, mas nunca deixei isso me afetar. Lamentar não me fez ganhar espaço, pelo contrário. Sempre foquei no meu trabalho, em fazer o meu melhor.”

Sofia começou sua carreira na Praia de Pipa (RN), onde teve restaurante e café. De volta a BH, ela passou pelo Glouton e ajudou na abertura do Nicolau Bar da Esquina. Diz que aprendeu com o chef Leo Paixão tudo o que sabe sobre administrar uma cozinha profissional e empreender. Depois trabalhou com Massimo Battaglini. “Com ele, enxerguei que poderia ser chef sem estar no fogão dia e noite”, destaca.

Quando decidiu seguir a profissão sem estar na cozinha de um restaurante, Sofia começou a trabalhar como personal chef, dar aulas, consultorias, eventos e vender produtos, como o famoso patê de foie gras.
No mês que vem, ela deve inaugurar seu espaço físico, A Cozinha de Sofia, onde vai fazer tudo o que gosta. “Não será um restaurante, mas quero muito fazer jantares uma vez por mês, com menu degustação, e trazer chefs de vários lugares do Brasil para cozinhar comigo.”

Cozinha contemporânea

Nas receitas, a chef une bons produtos, técnicas modernas, combinações de sabores surpreendentes e apresentação sofisticada. Seu lema é seguir o conceito da cozinha italiana: realçar as características dos ingredientes sem muita interferência.
chef Marcela Guerra
“O desafio de ser mulher começa justamente com o tabu de que nós estamos na cozinha de casa, e nos restaurantes estão os homens”, comenta a chef Marcela Guerra(foto: André Calixto/Divulgação)
A costelinha glaceada com purê de avelã e vinagrete de uva representa bem o tipo de prato que ela gosta de fazer. “Uso um elemento tradicional da cozinha mineira, mas trago de forma contemporânea, sofisticada e autoral, com influências de lugares por onde passei”, relaciona. Outra receita dela que chama a atenção são as vieiras grelhadas, purê de ervilha com menta e presunto crocante.

Assim que abrir seu espaço, Sofia pretende lançar um cardápio semanal com produtos para consumir em casa. Além do patê de foie gras, feito com fígado de galinha, redução de vinho do Porto, ervas frescas e especiarias, ela quer incluir as massas artesanais, que a acompanham desde o início em Pipa. Entre elas, não pode faltar o sorrentino de cordeiro, que sempre fez muito sucesso.

A massa é recheada com paleta de cordeiro marinada com a pasta argentina adobo, assada, desfiada e refogada com cebola, alho, cenoura, passata de tomate e vinho tinto.
A grande referência de Sofia na cozinha é a chef Tássia Magalhães, do Restaurante Nelita, em São Paulo. “Vejo que ela é muito parecida comigo. É mulher, jovem, faz uma gastronomia elegante e conquistou um espaço enorme no mercado”, pontua.
Bolo red velvet
Bolo red velvet com geleia de frutas vermelhas (Comidaria Guerra)(foto: Jéssica Andrade/Divulgação)
Na véspera do Dia Internacional da Mulher, Sofia deixa um recado para as colegas de profissão: sejam fortes, mantenham a postura firme, mostrem com as suas atitudes do que são capazes e não deixem ninguém dizer o contrário. Segundo ela, só assim para vencer o preconceito e conquistar o seu lugar.
“Tenho quase 10 anos da gastronomia e sempre conquistei espaço com o meu trabalho. Em vez de me impor, mostrei do que sou capaz e conquistei respeito”, diz a chef, que quer ser referência em consultoria.

Luta diária

Marcela Guerra sempre gostou de cozinhar, mas não se imaginava como chef. “O desafio de ser mulher na cozinha começa justamente com o tabu de que nós estamos na cozinha de casa, e nos restaurantes estão os homens. Eu mesma me condicionava a isso, acreditando que não era capaz de cozinhar profissionalmente”, comenta. Aos poucos, ela foi ganhando confiança e ocupou seu lugar no mercado com o Comidaria Guerra.

Antes de abrir o seu negócio, Marcela passou por outros restaurantes. Em um deles, entrou como auxiliar e chegou a ser subchef. Apesar disso, ela enxerga que ainda existem muitas barreiras para a mulher crescer na cozinha profissional.
“As mulheres tendem a ficar lavando louça, fazendo os pré-preparos, mas nunca brilham na finalização do prato”, observa. Com isso, muitas cozinheiras, como ela, acabam optando por serem chefs dos próprios restaurantes.
Vieiras grelhadas
Vieiras grelhadas, purê de ervilha com menta e presunto crocante (A Cozinha de Sofia)(foto: Sofia Marinho/Divulgação)
Guerra é o sobrenome de Marcela, mas também carrega um simbolismo. O nome do restaurante representa a luta dela para quebrar tabus, ocupar espaço por competência, e não imposição, conquistar respeito e ter seu trabalho reconhecido. “Infelizmente, só quem é mulher sabe que temos que enfrentar uma guerra todos os dias, mas cada passo faz muita diferença.”

Quando coloca o dólmã, Marcela se sente com o máximo de potência. “Sinto que tenho poder nas minhas mãos para aguçar os sentidos das outras pessoas, e isso é incrível. Até me emociono.” Atrás do balcão, ela se mostra como um exemplo de que as mulheres são capazes de vencer os desafios e ter brilho próprio na cozinha. Na opinião dela, o importante é trabalhar com amor, garra e fazer aquilo em que acredita.

No cardápio do Comidaria Guerra, encontramos lanches veganos e vegetarianos. Marcela diz que a sua cozinha é totalmente intuitiva. Como não come carne, ela faz o que gostaria de encontrar nos restaurantes. “Não tenho formação acadêmica. Fui construindo sabores dentro do que conheci de cozinha com a minha avó e a minha mãe.”
Em destaque, o sanduíche de cogumelos com pasta de limão siciliano, a torta cremosa de mandioca com alho-poró e o bolo de chocolate com mousse de cappuccino.
Tostados de tomate
Tostados de tomate, abobrinha e cogumelos (Comidaria Guerra)(foto: André Calixto/Divulgação)
Na hora da contratação, a chef tenta sempre dar prioridade a quem tem menos oportunidades, especialmente as mulheres. Hoje, fazem parte da equipe uma mulher negra e uma mulher trans. Mas esse não é o único motivo.
Marcela lista algumas habilidades femininas que são desejadas na cozinha, como senso de organização, concentração e capacidade de executar várias tarefas ao mesmo tempo com muita qualidade. “Isso é maravilhoso para o nosso trabalho.”

Costelinha glaceada com purê de avelã e vinagrete de uva (Sofia Marinho)

Ingredientes
1 costelinha de porco cortada por ossinho; sal e pimenta-do-reino; suco de 2 limões capeta; 1 colher de sopa de açúcar mascavo; 3 folhas de louro; tomilho fresco; 5 dentes de alho amassados; 1 colher de sopa de banha de porco; 1 cebola; ½ cenoura; 1 alho-poró; 2 colheres de sopa de extrato de tomate; 200ml de vinho branco; 1 colher de sopa de manteiga; 1 colher de sopa de farinha de trigo; 8 gotas de molho de pimenta; água; 300g de cará; 150g de avelãs; sal; 10 uvas verdes sem caroço; 1 colher de sobremesa de azeite; 1 colher de sobremesa de suco de limão siciliano
Modo de fazer
Tempere a costelinha com sal, pimenta-do-reino, limão, açúcar mascavo, louro, tomilho e alho e deixe pegando sabor por pelo menos 1 hora. Em uma panela de fundo grosso, derreta a banha (se preferir, use azeite) e doure as costelinhas, poucas por vez, até estarem bem douradas. Retire o excesso de gordura e refogue a cebola, a cenoura e o alho-poró. Deixe tostar bem os legumes e entre com o extrato de tomate. Adicione o vinho branco e vá passando uma colher de pau ou espátula para desgrudar todo o sabor que ficou no fundo da panela. Coloque a manteiga e deixe derreter. Coloque as gotas de pimenta e a farinha de trigo. Mexa bem até engrossar. Volte com as costelinhas para a panela e coloque um pouco de água, mexendo para dissolver bem a massa que se formou com os vegetais e a farinha. Complete com água apenas o suficiente para cobrir as costelinhas e cozinhe por cerca de duas horas, ou até estarem bem macias. Adicione água quando necessário. Enquanto isso, cozinhe o cará até ficar quase desmanchando. Coloque a avelã em um bowl e cubra com água fervente até a água esfriar. Retire a pele das avelãs. Bata em um liquidificador ou processador o cará e a avelã até formar um purê. Tempere com sal. Quando a costelinha estiver pronta, retire-as da panela e coe o molho. Leve o molho para outra panela e deixe reduzir até ficar com a consistência grossa. Corte as uvas em cubinhos e misture com o azeite e o suco do limão. Para montar o prato, sirva uma colher generosa de purê, coloque a costelinha ao lado e cubra com o molho. Sirva uma colherada do vinagrete de uva e decore com um pouco de avelã tostada e brotos.